Entrevista com jaqueline Weigel por Kátia Carmo – revista Adm Pro, maio / Junho 2020
Isolamento social, mudanças na maneira de trabalhar e de se relacionar com as outras pessoas, além da ressignificação da vida profissional e pessoal. Todas as alterações decorrentes da pandemia do novo coronavírus trouxeram uma certeza: o mundo não será como antes depois que tudo isso passar. Como seremos, trabalharemos e planejaremos as nossas vidas e, também, os nossos negócios, entretanto, é um futuro que precisa ser construído com muito cuidado
É difícil dizer de forma precisa quando o mundo começou a pensar no conceito de um novo normal. Em 2009, o economista Mohamed El-Erian (então sócio de uma importante gestora de investimentos) publicou o artigo A new normal, que tratava
sobre a transformação na economia global após a crise financeira que abalou os Estados Unidos, em 2008, quando houve o estouro de uma grande bolha imobiliária no País. No texto, El-Erian previa uma ruptura estrutural e a necessidade de uma mudança de mentalidade para a retomada das atividades. Onze anos depois, cá estamos nós, passando por uma nova crise, desta vez causada pela pandemia do novo coronavírus (já considerada pelo Fundo Monetário Internacional – FMI como a pior recessão desde a Grande Depressão, em 1929), e utilizando a mesma expressão para definir o nosso futuro.
Mesmo que você não esteja atento às notícias e às especulações sobre quando e como tudo isso irá acabar, certamente o termo “novo normal” já se fez presente em algum momento da sua vida na quarentena. São várias as projeções: seremos mais atentos a nossa família, deixaremos de ir fisicamente às lojas e ao médico e passaremos a usar a tecnologia para isso, estudaremos majoritariamente a distância e teremos o home office como modelo principal de trabalho. Essas e outras tendências, discutidas em inúmeras lives e webinars por tantas organizações, no entanto, não parecem algo essencialmente novo. Afinal, não é de hoje que a transformação digital e o trabalho a distância estão presentes em nossas vidas. Não foi agora, em 2020, que o conceito de equilibrar melhor a vida pessoal e profissional apareceu. Também não foi a Covid-19 que mostrou, pela primeira vez, a necessidade de as empresas estarem presentes no cenário virtual. Há alguns anos, o famoso mundo VUCA (composto por volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade) já descrevia exatamente o que vivemos hoje e já fazia parte das discussões de especialistas de todas as áreas.
Em recente live realizada pelo CRA-SP, para falar sobre o papel do líder em tempos de crise, César Souza, um dos maiores nomes na área de liderança do Brasil, enfatizou que as mudanças que vemos agora foram apenas aceleradas pelo novo coronavírus. Para ele, já existia uma tempestade que estava transformando a vida das empresas e a pandemia veio antecipar o futuro e tirar o sono dos líderes empresariais de todo o País. “Essa mudança trouxe uma série de alterações na natureza e nos modelos de negócio, no ritmo em que as coisas eram feitas, nas relações sociais e trabalhistas e na imprevisibilidade”, disse Souza.
Para a futurista, especialista em Foresight e CEO da W Futurismo, Jaqueline Weigel, esse conceito de novo normal é perigoso na medida em que pode condicionar um grande número de pessoas a uma realidade vista por um pequeno grupo ou por gurus. Ela explica, ainda, que o futuro emite sinais, embora não seja totalmente previsível. “As mudanças estão aí e serão disruptivas e drásticas, disso eu não tenho dúvida. Elas, no entanto, já vinham sendo anunciadas e agora estão aceleradas. Isso não é uma surpresa da pandemia. Preocupa-me um pouco quando as pessoas começam a comprar as novas histórias prontas de um grupo de pensadores ou os ter- mos da moda e começam a construir o futuro não a partir de suas ideias, mas sim com base em histórias que estão sendo contadas. Chamamos isso de futuro colonizado”, defende.
Quebra de paradigmas
Além de favorecer uma série de projeções sobre como vive- remos daqui para a frente, o novo coronavírus também nos fez perceber que grandes apostas para o futuro estavam erradas ou, pelo menos, superestimadas (a tal da grande incerteza do mundo
VUCA). Teorias de que a máquina domina- ria rapidamente o mercado de trabalho e deixaria milhões de desempregados pare- cem estar mais longe de acontecer. Com o isolamento, o que vimos foi a importância da mão de obra de profissionais das mais diversas áreas, nesse momento com des- taque para a saúde, obviamente, mas também em setores como abastecimento, limpeza e segurança, apenas para citar alguns.
É claro que o desenvolvimento das tecnologias irá acelerar e facilitar processos lentos e burocráticos, mas é praticamente impossível imaginar, hoje, um mundo dominado por robôs, como muitas vezes chegou a se falar. “Isso é uma bobagem de quem não sabe o que é inteligência artificial. Os robôs são nossos aliados, eles vão nos tirar desse trabalho mecânico que deixa a nossa inteligência atrofiada. A automação vem para nos ajudar nesse mundo de complexidade e a tecnologia para nos servir e não para ocupar nosso espaço”, lembra Jaqueline, que também é membro da World Future Studies Federation, organização presente em mais de 60 países que debate e estuda os futuros do mundo.
Para a especialista, o debate em torno desse assunto deveria se concentrar na capacitação das pessoas para os novos postos e formas de se trabalhar, essa sim uma projeção que praticamente já se tornou realidade se imaginarmos que, “de uma hora para outra”, tivemos que nos adaptar ao trabalho remoto e a uma nova maneira de se viver a distância. “A grande dor do mercado de trabalho não é a perda ou a não criação de postos de trabalho, mas sim a não qualificação das pessoas para que elas ocupem estes novos postos que são muito diferentes dos empregos que tínhamos até então e que exigem uma qualificação completamente distinta”, ressalta.
“As mudanças estão aí e serão disruptivas e drásticas, disso eu não tenho dúvida. Elas, no entanto, já vinham sendo anunciadas e agora estão aceleradas. Isso não é uma surpresa da pandemia”, ressalta Jaqueline Weigel
Resistência à mudança
A velha e conhecida resistência à mudança e o medo do imprevisível, sentimentos que estão presentes em grande parte da população, precisarão dar lugar à coragem nesse futuro que se aproxima. Jaqueline lembra que o mundo se renova todos os dias e que os ciclos mudam de tempos em tempos, mas que o momento de agora apresenta transformações mais drásticas. Para ela, quem tem pensamento antecipatório e aprecia a mudança já está mais preparado no atual panorama. A futurista lembrou, ainda, que diante da atual incerteza sobre quando a pandemia terá um fim é até erra- do dizer que retomaremos a vida, pois não é possível retomar algo quando o cenário muda radicalmente.
Em outra live realizada pelo CRA-SP recentemente, desta vez sobre as possibilidades de recolocação no mercado de trabalho em tempos de pandemia, a gestora de pessoas Denise Asnis, sócia-fundadora da Taqe, aplicativo de recruta- mento profissional para jovens, e sócia-diretora da Oré Consultoria em Educação e Desenvolvimento Profissional, deixou bem claro que “quem não entender que não é possível controlar as coisas terá um período muito difícil pela frente”.
Se para os profissionais essa consciência é importante, na vida das organizações isso é fundamental para a permanência e, até mesmo, morte das empresas. “O mundo já não é mais previsível há muito tempo. Essa era da complexidade começou lá atrás, mas acho que muitas empresas não levaram isso a sé- rio achando que poderiam continuar nos modelos anteriores”, conta Jaqueline, ao afirmar que alguns negócios infelizmente precisam acabar para que novos organismos sociais apareçam, cresçam e prosperem. “A antiga forma de fazer negócio já não funciona há muito tempo. Precisamos aprender a olhar padrões que vão se repetindo durante a história, a olhar para futuros que estão se preparando para acontecer, para que a gente volte, tenha ideias no presente e transforme isso em ações”, explica.
O futuro no mundo dos negócios
“O mercado de trabalho futuro é livre, transversal, orgânico. Ele tem empresa sem dono, marca sem patente registrada e um funcionamento de rede melhor. Ele tem empresas que trabalham em parcerias e redes que se conectam. Eu não acredito em um cenário no qual poucas empresas manipulam o globo terrestre. Todos os estudos mostram que a classe média é a grande classe do amanhã, que as médias empresas e os empreendedores serão os mobilizadores desse futuro e carregarão a economia”, projeta Jaqueline.
Da mesma forma em que não podemos acreditar em um novo normal que se desenhou apenas com a chegada do novo coronavírus, também não devemos ignorar os sinais e estudos anteriores e nem as tendências que se apresentam neste momento. Por isso, esta edição da ADM PRO resolveu ouvir especialistas, nas mais diversas áreas, para saber o que esperar de setores essenciais, não só para a Administração, mas também para a vida em sociedade. O que muda no planejamento das empresas daqui para frente? Como o setor logístico deve se adaptar para vivenciar essa nova demanda? De que forma as empresas precisam fazer seus investimentos em e-commerce? Como o RH deve atuar para dar suporte aos profissionais depois desse período tão difícil? Quais as competências que devo ter para me manter vivo no mercado de trabalho pós-pandemia? As respostas para essas e outras inúmeras questões você encontra nas matérias a seguir. Boa leitura!